quarta-feira, novembro 18, 2009

Vinho




A taça foi brilhante e rara,
mas o vinho de que bebi
com os meus olhos postos em ti,
era de total amargura.
Desde essa hora antiga e preclara,
insensìvelmente desci,
e em meu pensamento senti
o desgosto de ser criatura.
Eu sou de essência etérea e clara:
no entanto, desde que te ví,
como que desapareci...
Rondo triste, à minha procura.
A taça foi brilhante e rara:
mas, com certeza enlouqueci.
E desse vinho que bebi
se originou minha loucura.

Cecília Meireles

Êxtase



(Essa é pra você Marcelo)

Deixa-te estar embalado no mar noturno
onde se apaga e acende a salvação.
Deixa-te estar na exalação do sonho sem forma:
em redor do horizonte, vigiam meus braços abertos,
e por cima do céu estão pregados meus olhos, guardando-te.
Deixa-te balançar entre a vida e a morte, sem nenhuma saudade.
Deslisam os planetas, na abundância do tempo que cai.
Nós somos um tênue pólen dos mundos...
Deixa-te estar neste embalo de água geando círculos.
Nem é preciso dormir, para a imaginação desmanchar-se em figuras
ambíguas.
Nem é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo.
Nem é preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno
e afoga a boca da vontade e os seus pedidos...

Cecília Meireles

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Si desmorono ou si edifico,
si permaneço ou me desfaço,
-- não sei, não sei. Não sei si fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
-- mais nada.

Cecília Meireles

sábado, novembro 07, 2009

Eu Não Tenho Chão


Eu não tenho chão
Eu não tenho casa
Eu não tenho pão
Tô vendendo as asas
Que possuo
Por não ter nada mais
Vez em quando um leite, vez um feijão
Quem jamais ganhou presente de Natal?
Eu não tenho chão
Só tenho grão de esperança
Deixa pra lá Ha quem tem por nós Eu não tenho casa (nada)
Eu não tenho pão
Estou vendendo as asas
Que possuo
Por não ter nada a mais
Vou longe com Deus e asas que levo
Vejo os castelos frente ao meu brinquedo
Eu não tenho som
Canto o que me dão
Viva a vida, vida viverá
Mas vejo nos olhos de Esmeralda
Um dom que sossega a minha tristeza
Só ela contrói
Sem ela tudo me dói
Deixa pra lá
Há quem tenha por nós