Desde
a sua morte, aos 66 anos, a obra do diretor, dramaturgo e poeta Heine
Müller (1929-1995) não para de ganhar dimensão. Enquanto multiplica-se o
número de montagens por conta dos 80 anos de seu nascimento, celebrados
em 2009, ele tem seu trabalho renovado pelo interesse de jovens
montadores e é tido por teóricos contemporâneos como o maior nome do
teatro alemão desde Bertolt Bretch (1898-1956). Um velho – e importante –
companheiro, no entanto, é hoje o maior responsável pela circulação de
seus textos mundo afora. Discípulo, parceiro de palco e um dos mais
profícuos montadores da obra do autor, com mais de 15 textos encenados, o
búlgaro Dimiter Gotscheff apresenta terça e quarta, no Espaço Sesc, o
aclamado Hamlet-máquina (Hamletmachine).
–
Cada vez que trabalho com seus textos, descubro um universo de
possibilidades. A obra de Müller é inesgotável – atesta Gotscheff, em
entrevista ao Jornal do Brasil. – Conheci-o em 1964 e foi a
primeira vez que tive acesso a um trabalho de sua autoria. Desde então,
ele está presente na minha vida e no meu trabalho. Apesar de já ter
encenado uma série de textos, ainda não terminei de montar todos os que
eu gostaria. Me sinto honrado por ele ter existido e participado da
minha vida, mas o que realmente aprendi com ele foi beber uísque.
Diretor
permanente do Deutsches Theater Berlim, onde começou a carreira como
aluno e colega de Benno Besson, Gotscheff desenvolveu para sua
minitemporada brasileira uma versão especial para o escrito – um
comentário radical e atualizado sobre a mais célebre tragédia
shakespeariana. Passado no fim do regime comunista na Alemanha Oriental,
o texto, garante o diretor, tem sua densidade e alcance intactos, mesmo
após o fim da polaridade que dividia o mundo durante o período da
Guerra Fria.
–
Os textos de Müller apontam para o futuro. Ele mesmo dizia que seu
trabalho era um diálogo com os mortos. E por esse motivo são
absolutamente válidos e importantes para a realidade de hoje – afirma o
diretor. – Não é porque o comunismo ou o socialismo real acabaram que o
seu texto perde pegada contemporânea. A utopia é parte integrante da
escrita de Müller, assim como é elemento fundamental do meu trabalho
como diretor.
Estruturada em cinco cenas que espelham o nosso tempo e a tragédia de Shakespeare, Hamlet-máquinasinaliza
as catástrofes da história e da cultura ocidental e reflete sobre a
crise do pensamento artístico e intelectual nos dias de hoje. Dividido
entre o desejo de se transformar numa máquina sem dor ou pensamentos e a
necessidade de se tornar um historiador desse tempo, o protagonista,
interpretado por Gotscheff, contracena com mais dois personagens,
vividos por Paula Cohen e Gero Camilo.
– Hamlet-máquina trata
do fim de um sistema. E nele, o ator que interpreta Hamlet, no caso eu
mesmo, se acaba junto e dentro do sistema. A frase central que simboliza
a visão de Müller é “A esperança não se concretizou”. Hamlet a anuncia
em seu momento mais trágico, e serve como um emblema para o mundo em que
vivemos. Infelizmente, a esperança não se concretizou.
Interessado
pela crítica poética de Müller, mais do que pelos desdobramentos
políticos do dia a dia, Gotscheff concorda que a grave crise financeira
ocorrida no último ano, uma das maiores da história, serviu muito pouco
para a mudança da mentalidade ocidental e do momento cultural, histórico
e social que atravessamos.
–
Sou interessado pela complexidade como Müller analisa e atualiza os
textos clássicos. Ele dizia que o fim do socialismo real não era uma
tragédia, mas sim que o pensamento velho e conservador tenha vencido. E é
o que o torna atual quando fala de utopias sociais. Vivemos num tempo
de alienações. O que é muito grave para nós. Na peça, é justamente o
buraco negro que se abre diante de Hamlet.
Teatro de atores
Em
suas montagens, Gotscheff segue à risca a filosofia do teatro pobre,
que dispensa os recursos atmosféricos dos grandes cenários e figurinos.
Concentrado em desvendar a alma humana, esteve à frente dos teatros
municipais de Colônia, Düsseldorf, Hamburgo e Berlim, e foi descrito
pelo ator Dieter Prochnow como “o único diretor que realmente ama seus
atores”.
– Fico completamente concentrado neles. Meu teatro está ali. Cenário, figurinos e recursos técnicos ficam em segundo plano.
Reduzido
à essência, a concentração nos atores reflete um espetáculo espartano
que contrasta e se distingue da poesia selvagem e irônica tão comum no
teatro de hoje, mesmo o alemão.
–
A dramaturgia contemporânea alemã me impressiona muito pouco – diz. –
Müller é ainda mais do que suficiente. Só trabalho com bons textos, ou
seja, desafiadores. Aí pode ser um clássico ou um contemporâneo, tanto
faz.
A franqueza explica a versatilidade do encenador, que já montou obras variadas, como A luta do negro e dos cães, de Bernard-Marie Koltès; Ivanov, de Anton Tchecov; Tartufo, de Molière; A morte de um caixeiro viajante, de Arthur Miller; além de uma adaptação de Müller para Os persas, de Ésquilo; – apresentada ano passado no Brasil – assim como para Titus Andronicus, de Shakespeare, apresentada recentemente em Berlim.
–
Shakespeare teria ficado feliz com o texto de Müller, que também é um
gigante. E tenho a certeza de que ele teria se revirado na tumba, mas
feliz, se visse a minha encenação – diverte-se. – Essa versão paraTitus... é
politicamente muito atual. Fala da queda do reino romano, engolido pela
periferia. Não é o que estamos vivendo e discutindo nos dias de hoje? A
fome do terceiro mundo e a voracidade do mercado. A fome é o ponto
central que deve ser atacado.
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