sexta-feira, setembro 09, 2011

"Hamlet-Máquina"


Desde a sua morte, aos 66 anos, a obra do diretor, dramaturgo e poeta Heine Müller (1929-1995) não para de ganhar dimensão. Enquanto multiplica-se o número de montagens por conta dos 80 anos de seu nascimento, celebrados em 2009, ele tem seu trabalho renovado pelo interesse de jovens montadores e é tido por teóricos contemporâneos como o maior nome do teatro alemão desde Bertolt Bretch (1898-1956). Um velho – e importante – companheiro, no entanto, é hoje o maior responsável pela circulação de seus textos mundo afora. Discípulo, parceiro de palco e um dos mais profícuos montadores da obra do autor, com mais de 15 textos encenados, o búlgaro Dimiter Gotscheff apresenta terça e quarta, no Espaço Sesc, o aclamado Hamlet-máquina (Hamletmachine).
– Cada vez que trabalho com seus textos, descubro um universo de possibilidades. A obra de Müller é inesgotável – atesta Gotscheff, em entrevista ao Jornal do Brasil. – Conheci-o em 1964 e foi a primeira vez que tive acesso a um trabalho de sua autoria. Desde então, ele está presente na minha vida e no meu trabalho. Apesar de já ter encenado uma série de textos, ainda não terminei de montar todos os que eu gostaria. Me sinto honrado por ele ter existido e participado da minha vida, mas o que realmente aprendi com ele foi beber uísque.
Diretor permanente do Deutsches Theater Berlim, onde começou a carreira como aluno e colega de Benno Besson, Gotscheff desenvolveu para sua minitemporada brasileira uma versão especial para o escrito – um comentário radical e atualizado sobre a mais célebre tragédia shakespeariana. Passado no fim do regime comunista na Alemanha Oriental, o texto, garante o diretor, tem sua densidade e alcance intactos, mesmo após o fim da polaridade que dividia o mundo durante o período da Guerra Fria.
– Os textos de Müller apontam para o futuro. Ele mesmo dizia que seu trabalho era um diálogo com os mortos. E por esse motivo são absolutamente válidos e importantes para a realidade de hoje – afirma o diretor. – Não é porque o comunismo ou o socialismo real acabaram que o seu texto perde pegada contemporânea. A utopia é parte integrante da escrita de Müller, assim como é elemento fundamental do meu trabalho como diretor.
Estruturada em cinco cenas que espelham o nosso tempo e a tragédia de Shakespeare, Hamlet-máquinasinaliza as catástrofes da história e da cultura ocidental e reflete sobre a crise do pensamento artístico e intelectual nos dias de hoje. Dividido entre o desejo de se transformar numa máquina sem dor ou pensamentos e a necessidade de se tornar um historiador desse tempo, o protagonista, interpretado por Gotscheff, contracena com mais dois personagens, vividos por Paula Cohen e Gero Camilo.
– Hamlet-máquina trata do fim de um sistema. E nele, o ator que interpreta Hamlet, no caso eu mesmo, se acaba junto e dentro do sistema. A frase central que simboliza a visão de Müller é “A esperança não se concretizou”. Hamlet a anuncia em seu momento mais trágico, e serve como um emblema para o mundo em que vivemos. Infelizmente, a esperança não se concretizou.
Interessado pela crítica poética de Müller, mais do que pelos desdobramentos políticos do dia a dia, Gotscheff concorda que a grave crise financeira ocorrida no último ano, uma das maiores da história, serviu muito pouco para a mudança da mentalidade ocidental e do momento cultural, histórico e social que atravessamos.
– Sou interessado pela complexidade como Müller analisa e atualiza os textos clássicos. Ele dizia que o fim do socialismo real não era uma tragédia, mas sim que o pensamento velho e conservador tenha vencido. E é o que o torna atual quando fala de utopias sociais. Vivemos num tempo de alienações. O que é muito grave para nós. Na peça, é justamente o buraco negro que se abre diante de Hamlet.

Teatro de atores
Em suas montagens, Gotscheff segue à risca a filosofia do teatro pobre, que dispensa os recursos atmosféricos dos grandes cenários e figurinos. Concentrado em desvendar a alma humana, esteve à frente dos teatros municipais de Colônia, Düsseldorf, Hamburgo e Berlim, e foi descrito pelo ator Dieter Prochnow como “o único diretor que realmente ama seus atores”.
– Fico completamente concentrado neles. Meu teatro está ali. Cenário, figurinos e recursos técnicos ficam em segundo plano.
Reduzido à essência, a concentração nos atores reflete um espetáculo espartano que contrasta e se distingue da poesia selvagem e irônica tão comum no teatro de hoje, mesmo o alemão.
– A dramaturgia contemporânea alemã me impressiona muito pouco – diz. – Müller é ainda mais do que suficiente. Só trabalho com bons textos, ou seja, desafiadores. Aí pode ser um clássico ou um contemporâneo, tanto faz.
A franqueza explica a versatilidade do encenador, que já montou obras variadas, como A luta do negro e dos cães, de Bernard-Marie Koltès; Ivanov, de Anton Tchecov; Tartufo, de Molière; A morte de um caixeiro viajante, de Arthur Miller; além de uma adaptação de Müller para Os persas, de Ésquilo; – apresentada ano passado no Brasil – assim como para Titus Andronicus, de Shakespeare, apresentada recentemente em Berlim.
– Shakespeare teria ficado feliz com o texto de Müller, que também é um gigante. E tenho a certeza de que ele teria se revirado na tumba, mas feliz, se visse a minha encenação – diverte-se. – Essa versão paraTitus... é politicamente muito atual. Fala da queda do reino romano, engolido pela periferia. Não é o que estamos vivendo e discutindo nos dias de hoje? A fome do terceiro mundo e a voracidade do mercado. A fome é o ponto central que deve ser atacado.

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